O prof. Rodolfo Londero nos deixou o artigo que apresentará durante o seminário, no qual trata sobre duas recentes obras brasileiras de literatura cyberpunk, ambas publicadas pela Tarja Editorial – que ja confirmou presença no Science’n’Fiction. “Os Dias da Peste“, de Fábio Fernandes (que estará na mesma mesa de Londero), e “Cyber Brasiliana“, de Richard Diegues (editor da Tarja Editorial) são os livros analisados por Londero no artigo “Singularidades brasileiras da ficção científica cyberpunk contemporânea”.Londero também recomenda “The Singularity is Here“, de Steven Shaviro.
Singularidades brasileiras da ficção cyberpunk contemporânea1
Rodolfo Rorato Londero (UFSM/Unicentro)
A ficção cyberpunk se estabelece como tendência na ficção científica brasileira durante as duas últimas décadas do século anterior, período que se convencionou chamar de Segunda Onda, principalmente através de autores como Fausto Fawcett e Guilherme Kujawski que, na primeira metade dos anos 1990, ganharam notoriedade nas páginas de jornais e revistas ao publicarem, respectivamente, Santa Clara Poltergeist (1991) e Piritas siderais (1994) (FERNANDES, 2007, p. 74). As referências tanto de Fawcett quanto de Kujawski não são os romances de William Gibson e Bruce Sterling, ou seja, dos autores inaugurais do movimento cyberpunk dos anos 1980, apesar de que ambos foram publicados no Brasil no início dos anos 1990, mas sim obras precursoras da ficção cyberpunk – principalmente cinematográficas, como, por exemplo, Blade Runner (1982) e Videodrome (1982) – ou mesmo o zeitgest econômico e cultural do final do século XX (neoliberalismo e pós-modernismo, respectivamente). Neste sentido, enquanto a Segunda Onda realizou recepções indiretas e análogas da ficção cyberpunk, os escritores que produzem atualmente estabelecem recepções diretas2. É o caso de Fábio Fernandes que, além de pesquisador da ficção cyberpunk em A construção do imaginário cyber (2006), é o autor de Os dias da peste (2009), romance que apresenta vários elementos da ficção cyberpunk (vírus, ciberespaço, gadgets, implantes, inteligências artificiais, etc.), mas que também vai além dela para encontrar um dos seus muitos derivados: a pós-singularidade. Shaviro, que identifica proximidades entre a pós-singularidade e o cyberpunk (SHAVIRO, 2009, p. 108), define o primeiro a partir do seu exemplo mais conhecido:
-
-
Accelerando (2005), de Charles Stross, é um romance sobre pós-singularidade, o exemplo mais conhecido de um pequeno, mas crescente subgênero da ficção científica. A ficção científica sobre pós-singularidade tenta imaginar, trabalhando em cima das conseqüências, o que os tecno-futuristas têm chamado de Singularidade. Isto é, o suposto – e estritamente falando, inimaginável – momento quando a raça humana atravessa um portal tecnológico e definitivamente se torna pós-humana. De acordo com este cenário, o crescimento exponencial no mais puro poder dos computadores, juntamente com avanços nas tecnologias de inteligência artificial, nanomáquinas e manipulação genética, mudarão completamente a natureza de quem e o que somos3 (SHAVIRO, 2009, p. 103).
Entretanto, ao contrário de Accelerando, Os dias da peste é pré-singularidade, ou melhor, pré-convergência entre homens e inteligências construídas (como as inteligências artificiais se denominam no romance). Ou seja, o narrador-protagonista Artur Mattos, através de relatos escritos em diários e postados em blogs e podcasts, testemunha os eventos que antecedem à Convergência, fenômeno vagamente descrito ao longo do romance, mas que parece remeter à definição de Singularidade. Uma característica estilística do narrador-protagonista, capaz de fornecer metáforas da Convergência, é a intertextualidade recorrente, levando seu amigo a dizer que “o que estraga o mundo é o excesso de referências” (FERNANDES, 2009, p. 164). Em todo o caso, é este excesso de referências que permite, por exemplo, arriscar uma resposta para o seguinte enigma em forma de haikai:
-
-
quando o sistema é wireless?
-
-
coração inquieto (FERNANDES, 2009, p. 92).
Em outro momento (FERNANDES, 2009, p. 33), por meio de um colega professor, Artur conhece Distúrbio Eletrônico (1997), obra inclassificável do coletivo Critical Art Ensemble, mistura de ensaio político e “poesia plagiária”, que apresenta o conceito de “poder nômade”. O modelo deste poder são os citas, tribo descrita por Herótodo como invencível graças ao nomadismo: “Sem cidades ou territórios fixos, aquela ‘horda migratória’ nunca podia na verdade ser localizada. Conseqüentemente, nunca podiam ser postos na defensiva e conquistados. Mantinham sua autonomia por meio do movimento” (CRITICAL ART ENSEMBLE, 2001, p. 23-24). Entretanto, o que interessa é a reinvenção deste “modelo arcaico de distribuição do poder e estratégia predatória” pelo “capitalismo tardio”, baseado na “abertura tecnológica do ciberespaço” (CRITICAL ART ENSEMBLE, 2001, p. 24). Ou seja, através do ciberespaço, o capitalismo tardio não se fixa em instituições reconhecíveis, dificultando qualquer forma de subvertê-lo, pois “para saber o que subverter seria preciso que as forças de opressão fossem estáveis e pudessem ser identificadas e separadas” (CRITICAL ART ENSEMBLE, 2001, p. 22). O capital não se encontra nas mercadorias ou nas empresas, mas flutua livremente nos sistemas financeiros informatizados. Para retornar ao enigma, portanto, como sabotar o sistema quando ele está em toda parte e, portanto, em nenhuma parte? É neste sentido que “a Singularidade é realmente uma fantasia do capital financeiro”4 (SHAVIRO, 2009, p. 115), mas também no sentido que a Singularidade, definida em Os dias da peste simplesmente como “uma troca” (FERNANDES, 2009, p. 181) entre homens e máquinas, é a metáfora do valor de troca exponencial próprio do capital financeiro, pois se o capital em si é abstração/equivalência dos valores de uso, então o capital financeiro é abstração da abstração (SHAVIRO, 2009, p. 113). A Singularidade, enquanto metáfora do capital financeiro, é a troca absoluta que surge quando inexistem distinções de qualquer tipo, quando nada mais se define por suas qualidades inerentes: se todos podem abolir a “orientação espacial standard, ou padrão, do corpo humano dito tradicional” (FERNANDES, 2009, p. 9), então o que define cada um? Para Ray Kurzwiel, guru da Singularidade, “não haverá nenhuma distinção, após a Singularidade, entre homem e máquina ou entre a realidade física e a virtual”5 (KURZWEIL apud SHAVIRO, 2009, p. 104). Não se troca isto por aquilo, pois nada se diferencia: apenas se troca.
A metáfora meticulosa do capitalismo tardio proposta em Os dias da peste não resulta numa representação distópica do futuro próximo, como ocorre na ficção cyberpunk em geral: ao contrário, Os dias da peste, tal qual Accelerando (SHAVIRO, 2009, p. 109), é tecno-utópico, ainda que Artur, sempre desconfiado, demore a perceber os benefícios da Convergência. Na verdade, para Shaviro, extrapolações como a Singularidade demonstram que “o capitalismo em si é, hoje, diretamente e imediatamente utópico: e isto é, talvez, a coisa mais aterrorizante a respeito dele”6 (SHAVIRO, 2009, p. 115). Aterrorizante, pois a utopia, enquanto não-lugar, é o lugar do outro, e não o lugar do mesmo. Neste sentido, a Singularidade abole inclusive as distinções entre o outro e o mesmo, possibilitando que o capitalismo seja tautologicamente trocado pelo capitalismo. Em todo o caso, utópico ou não, a ficção cyberpunk, e também seus derivados, é “a expressão literária suprema, se não do pós-modernismo, então do próprio capitalismo tardio” (JAMESON, 2006, p. 414; grifo do autor). Mas como imaginar a ficção cyberpunk nos países do chamado Terceiro Mundo, ou seja, nos lugares que estão “ao mesmo tempo dentro e fora do sistema multinacional” (GAZOLLA, 1994, p. 15)? O cenário de afluência econômica, militar e tecnológica formado pelos países do eixo-sul que Richard Diegues propõe em Cyber Brasiliana (2010) somente é possível devido aos setores primários destes países que estão fora do capitalismo financeiro mundial (com exceção da Austrália): através do embargo de alimentos imposto pela República da União Brasiliana (DIEGUES, 2010, p. 102) e da substituição do lastro monetário por pedras preciosas promovido pela Africanísia (DIEGUES, 2010, p. 33), os países do eixo-norte entram em decadência, sendo suas terras e riquezas espoliadas por corporações multinacionais. É como se a recorrente distopia neoliberal imaginada pela ficção cyberpunk, de empresas governando o mundo, se limitasse aos países do hemisfério norte, enquanto a presença e a intervenção estatal fosse o outro lado da moeda, do outro lado do hemisfério. O outro então está presente em Cyber Brasiliana, mas também não é necessariamente utópico (no sentido lato do termo): no programa de dois pais, propagandeado pela República Brasiliana, “a idéia era ampliar a segurança e dar uma maior instrução para os jovens, criando homens aptos a defesa da soberania” (DIEGUES, 2010, p. 133). Percebe-se aqui uma (anti-)utopia espartana justificada por uma retórica nacionalista.
Existem utopias radicais em Cyber Brasiliana, mas, ao invés de se realizarem na economia e na política, elas se dão na ecologia e no ciberespaço. Aliás, enquanto a primeira abre o romance, a última o fecha. A ausência de poluição em São Paulo é o primeiro indício de afluência nos países do eixo-sul:
-
-
Em 2106, quando tinha oito anos, ainda havia dias em que a poluição em São Paulo atingia níveis absurdos – alcançava até noventa por cento nos picos, como ainda ocorria em muitos subpaíses do Conclave América-Oldeuropean. Com as pessoas passando grande parte do tempo plugadas em suas casas, o pulso de aço das ONGs e as leis – imposições de merda! – ambientais, a poluição era algo irrisório. Carros, praticamente apenas os de entrega e dos trabalhadores braçais (DIEGUES, 2010, p. 11).
Um dos motivos desta redução drástica da poluição, como se percebe, são “as pessoas passando grande parte do tempo plugadas em suas casas”: em Cyber Brasiliana, o ciberespaço se chama Hipermundo, um ambiente de realidade virtual compartilhado por usuários da rede mundial de computadores. Ainda que Diegues (2010, p. 249) não o cite entre os escritores de ficção científica que o inspiraram, o seu Hipermundo se assemelha ao Metaverso proposto por Neal Stephenson em Snow Crash (1992), principalmente na comercialização de espaços e publicidade – comparar, por exemplo, Diegues (2010, p. 19) e Stephenson (2008, p. 29) –, o que reforça a hipótese de recepção direta. Entretanto, após as corporações do eixo-norte fracassarem em seu plano de dominar o Hipermundo, este é totalmente reconfigurado, permanecendo por um momento sem leis: “O som de tumultos começava a eclodir em todos os cantos. A anarquia começava a imperar. E trazia junto o caos. Ela sabia que não restaram Desenvolvedores para consertar as coisas. Para recolocar tudo nos eixos” (DIEGUES, 2010, p. 243). Isto dura até os usuários descobrirem que “suas contas bancárias e documentos de posse estavam em ordem, suspirando ao ver que o Virtual HM Bank e o Geo-4-ce estavam firmes e fortes” (DIEGUES, 2010, p. 245). O imaginário anárquico da terra sem leis, representando pelos cowboys do ciberespaço nos anos inicias do movimento cyberpunk, é prontamente descartado a favor das leis comerciais que invadiram a Internet nos anos 1990: neste sentido, e não no indicado por Barber (2010, p. 7) no prefácio do romance, Cyber Brasiliana é literalmente pós-cyberpunk, ou seja, após a morte do gênero, como decretada por Arthur e Marilouise Kroker em “Johnny Mnemonic: o dia em que o cyberpunk morreu” (1995):
-
-
Johnny Mnemonic, o filme, é o dia em que o cyberpunk morreu. (…) Assassinado pela mera aceleração cultural, pelo fato de que a metáfora cyberpunk dos anos 80 realmente não funciona nos virtuais anos 90, o fracasso popular de Johnny Mnemonic atesta o fim da fase carismática da realidade digital e o começo da lei de ferro da estandardização tecnológica7 (KROKER; KROKER apud MORENO, 2003, p. 69).
É o que também atesta o final de Cyber Brasiliana, assassinando o espírito anárquico do cyberpunk por uma segunda vez, quinze anos depois. Se ainda existe algo dele no romance, é apenas como nostalgia: “Os ideais se foram. Era um saudosista do tempo em que todos conheciam codificação. Agora só restavam perdedores. Malditos usuários” (DIEGUES, 2010, p. 164). Quando todos conheciam codificação, todos criavam suas regras no ciberespaço, ao contrário dos usuários que devem seguir regras estabelecidas por outros. Após a “revolução” que ocorre no Hipermundo, quem passa a estabelecer as regras é o protagonista Kamal (codinome Pistoleiro), afirmando que, “por detrás dessas mudanças, haverá controle” (DIEGUES, 2010, p. 246). Não surpreende, diante do já exposto, que Kamal ganhe poderes extraordinários sobre o Hipermundo após uma experiência de Singularidade que somente se esclarece nas últimas linhas:
-
-
– Você é um deus? – perguntou o avatar de um garoto, mais próximo dele. – Veio substituir os anteriores?
-
-
– Garoto, sinceramente, prefiro que me chamem por Pistoleiro.
-
-
Kamal sorriu, provando que ainda era humano.
-
-
Em parte (DIEGUES, 2010, p. 247).
Mais que provar que ainda é humano, o sorriso de Kamal é a ironia diante das mudanças aparentes, do milenarismo tecnológico que subsiste no discurso da Singularidade, que “é precisamente nos trazer a utopia sem incorrer na inconveniência de questionar nossos contextos social e econômico atuais”8 (SHAVIRO, 2009, p. 106).
Referências bibliográficas
BARBER, Heraldo Assis. Prefácio. In: DIEGUES, Richard. Cyber Brasiliana. São Paulo: Draco, 2010.
CRITICAL ART ENSEMBLE. Distúrbio eletrônico. Trad. Leila de Souza Mendes. São Paulo: Conrad, 2001.
DIEGUES, Richard. Cyber Brasiliana. São Paulo: Draco, 2010.
GAZOLLA, Ana Lúcia Almeida. Fredric Jameson: uma epistemologia ativista. In: JAMESON, Fredric. Espaço e imagem: teorias do pós-moderno e outros ensaios. Trad. Ana Lúcia Almeida Gazolla. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1994.
FERNANDES, Fábio. Para ver os homens invisíveis: a Intempol e sua influência na literatura de ficção científica brasileira. In: NOLASCO, Edgar Cézar; LONDERO, Rodolfo Rorato (orgs.). Volta ao mundo da ficção científica. Campo Grande: Ed. UFMS, 2007.
_____. Os dias da peste. São Paulo: Tarja Editorial, 2009.
JAMESON, Fredric. Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. Trad. Maria Elisa Cevasco. São Paulo: Ática, 2006.
LONDERO, Rodolfo Rorato. Níveis de recepção da ficção cyberpunk no Brasil: um estudo de casos exemplares. In: NOLASCO, Edgar Cézar; LONDERO, Rodolfo Rorato (orgs.). Volta ao mundo da ficção científica. Campo Grande: Ed. UFMS, 2007.
MORENO, Horacio. Cyberpunk: mas allá de Matrix. Barcelona: Círculo Latino, 2003.
SHAVIRO, Steven. The Singularity is Here. In: BLOUD, Mark; MIÉVILLE, China (orgs.). Red planets: marxism and science fiction. Middletown: Wesleyan University Press, 2009.
STEPHENSON, Neal. Nevasca. Trad. Fábio Fernandes. São Paulo: Aleph, 2008.